A produção de software é, por definição, a produção de algo que não é uma coisa, o que, admitamos, parece uma contradição em termos. Quando digo “por definição”, também incorro em uma dificuldade: a palavra é fruto justamente da evitação do trabalho da definição, ela aparece como referência criada às pressas, e é uma formulação paradoxal. Dizer software, em inglês, é uma boutade quase poética, como seriam “ângulo redondo”, ou “pedra mole”. A computação é cheia dessas figuras de linguagem. Dizer “inteligência artificial” presume a existência de uma “inteligência natural” (que seria uma inteligência “burra”), e a “engenharia de software” é a engenharia do que não pode ser propriamente um engenho. Os criadores dessas expressões são humoristas, a computação é uma ciência feita por comediantes, ou então acontece de não estarmos muito distantes de um koan Zen, ou do Dào Dé Jīng, salvo por estarmos no presente. Eis o que justifica esse texto, que é, como veremos, também software.
Sem querer ir muito longe de uma vez só – se calhar, isso pode continuar em outros posts – só para dar o pontapé inicial, falando de uma coisa que interessa (esse é o critério): a produção de software se dá no momento em que a mercadoria deixa de ser o móbile do modo de produção econômica mais bem sucedido, que não sabemos se ainda é exatamente capitalista. O que faz a produção de software é tornar públicos os meios de produção, assumindo que a distinção entre bens de capital e bens de consumo não mais se aplica, e parar de disciplinar o trabalho. A produção de software, como a política, age no plano estratégico do engendramento das circunstâncias do desejo, e não no plano tático da ação-reação. Em outras palavras, os cientistas da computação descobriram que a gente escreve só por escrever, que uma vez que se comece a escrever não se pode mais parar, imaginaram um mundo em que produzir é o mesmo que escrever, e produziram esse mundo, escrevendo-o. Os participantes mais ativos da nova economia são aqueles que previram que os programadores, como os jornalistas, são trabalhadores que escrevem (também) por necessidade própria, e por isso percebem-se como gente que não trai o próprio desejo ao trabalhar. Ainda que isso seja uma ilusão, não deixa de ser uma posição inteiramente diferente. As redes sociais consubstanciam a ampliação do alcance dessa outra posição desejante a um número muito maior de pessoas. Não se trata de uma nova hegemonia, muito menos de uma “nova maioria”, mas o hábito de manifestar-se publicamente, por escrito, implica uma relação com um público leitor, a submissão afetiva ao juízo de uma platéia. Mais do que isso: é uma relação produtiva completa, que afeta outras cadeias de produção (inclusive de mercadorias) pela via da publicidade e do consumo. Mais ainda: o uso de links, hashtags, mecanismos de pesquisa e outros dispositivos já configura pertencimento da mensagem ao universo dos códigos da programação, sobre os quais não poucas bobagens foram ditas. O que nos interessa aqui é que não há diferença de natureza entre o programador que desenvolveu o “sistema” que aparentemente faz tudo isso funcionar, e o “usuário”, que aparentemente apenas o alimenta. Se você escreve habitualmente no Facebook, no Twitter, etc., de certa maneira participa de um agenciamento de enunciação em que as diferenças entre produtor e consumidor não estão dadas. Você pode ser um programador sem saber (pronto, falei). Tudo o que a interface pergunta é “o que você está fazendo?” Quem escreve, não necessariamente subordina-se a esse agenciamento, embora seja possível imaginar que o convívio entre formas de escrita é algo por natureza difícil de evitar, e aí o que temos é um problema ecológico, com pressões evolutivas de parte a parte, sem uma única moral. Uma última questão é: o que é escrever? Ou melhor, num plano mais subjetivo, a questão seria saber (como um Hamlet contemporâneo) e está realmente escrevendo, ou não. Uma resposta provisória seria que a escrita já começa quando se sai do paraíso das consciências tranquilas.
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